domingo, 20 de fevereiro de 2011

Curso

Nada muda-se completamente, tudo mantém a sua essência.

Crônica de amor.


Nasceu, saudável, 3 Quilos e 50 cm, muitos sorrisos se abriram, outros, nem tanto, mas ela não poderia perceber. Não sabia até ali o que lhe aguardava.
Nunca foi uma garota ruim, mas nunca se desfez de suas vontades.
Seus pais não gostavam do seu jeito, sempre reservada e pouco divertida, tinha amigos, mas eles não poderiam compreender o que nem ela conseguiria, então preferia ficar só.
Sua vida não parecia a das mais padronizadas, mas ela gostava apesar das distâncias. Era inteligente, mas não apta, isso dificultava um pouco as coisas, mas bem, ela também não se importava.
Ela levantava as 6h00min da manhã, mas acordava sempre às 4h40min para poder ver o dia nascer, arrastava seus pés até o banheiro, mas sem nenhum tipo de barulho, não queria ver o olhar de desgosto dos seus pais pela manhã, escovava os dentes, tomava banho, penteava seu cabelo sem muito gosto, mas sempre parecia linda, trocava a sua roupa, pegava a sua mochila, descia até a cozinha, tomava um copo de leite e lançava um suco em caixa na sua bagagem. Saia um pouco mais cedo que o necessário, mas adorava ver as senhoras vaidosas passeando com seus cachorros exaustos de tédio e mesmice. Odiava condução, por isso preferia ir andando, era logo ali mesmo. Ela era bonita, mas não digna de muita atenção, e adorava isso. Ao chegar a escola sempre sentava em baixo de uma amendoeira, não sabia o risco que corria de uma dessas frutinhas cair em cima de sua coragem, pegava algumas musicas e ia fazer as suas interpretações, sempre se surpreendia com algumas maldosas e amáveis mensagens subliminares que algumas traziam em suas entrelinhas. Sinal tocava, aula. Tinha um professor que ela sabia que ele a notara, e era um dos poucos, bem poucos que assim faziam. A volta pra casa era sempre menos digna de felicidade. Almoçava com seus pais, contava o seu dia por costume, subia ao quarto e arriscava algumas notas no violão, estudava, escrevia sua trajetória em pele de outra num pequeno caderno, sempre achou isso pouco original, mas se sentia bem. A noite fazia o que lhe agradava, sem rotinas a essa hora.
A situação em casa andava piorando, ela crescia, se tornava cada vez mais distante, talvez ela nunca tenha sido criança, mas seu tamanho aumentara e isso significava para seus pais que ela deixou de ser a menininha na qual não era do papai. Dava-se bem na escola, era seu ultimo ano, seu ”único professor”, assim como ela o chamava, arriscou um “olá”. Ela retribuiu simpática e surpreendida. Ele apenas sorriu e tornou-se parte da multidão. Não chegou a entender este momento, mas também, não chegou a pensar nele.
As coisas começaram a ficar cada vez mais complicada, ela não falava mais com ninguém, não ia a escola, seu enorme e aprimorado talento com o violão foi deixado de lado, seus cadernos com histórias não de corpo, mas de alma foram jogados na gaveta, sua cama sempre a guardava, e unicamente a acompanhava.
Seus pais viram ali a oportunidade de jogá-la em um espaço para pessoas com problemas sociais, muito parecido com um hospício. Assim foi feito.
Todos os que a “rodeavam” souberam, e como já prevíamos, não se importaram.
Nunca foi agressiva, em momento algum, muito pelo contrário, sabia defender-se amavelmente. Sua chegada ao “lar” foi comum, remédios, perguntas aos pais, quarto pouco confortável e uma garrafa de água ao lado. Ela ficava a vontade apesar do ar obscuro que aquele lugar mantinha, não tinha seus pais a julgando, discursando sobre o que ela tinha causado na vida deles.
Com o tempo passou a habitua-se ao local e mantinha como diversão observar um garoto intrigante, interessante e estranho que ela havia notado, ele parecia manter o mesmo jeito que seu “único professor”. O garoto não era bonito, tinha um cabelo negro baixo, pele branca, olhos escuros, barba por fazer, corpo magro, mão pequena, e um ar de mistério, ela sempre gostou de mistério, isso a fazia imaginar, criar vários personagens em uma só pessoa, sem nem ao menos saber quem era, e ir se descobrindo e descartando as hipóteses aos poucos. Nunca tentou nenhuma aproximação com ele, não via necessidade, adorava toda essa história dele formada por ela.
Dia de visita, esperou ninguém, ninguém veio. Ela teve uma impressão estranha de ver a imagem de seu professor passando, ficou com aquilo na cabeça, mas imaginou que talvez o garoto que ela estava estudando estivesse causado isso. Os dias iam passando lentamente ou rapidamente, ela já tinha perdido a noção disso, mas não era doente, e sabia disso, só era reservada demais para a sociedade, e não ligava de estar ali, afinal, era um lugar reservado, assim como ela.
O garoto vivia só, não se preocupava em persuadir ninguém, andava com algumas folhas atreladas a ele a algum tempo, sempre as lendo, e ela pela primeira vez em sua vida tinha curiosidade de algo, de ver o que ele carregava assim, atrelado, o que parecia ser tão importante, importante ao ponto de em uma tarde o fazê-lo sorrir, sim, ele sorriu! Ao ver esta cena ela não se conteve, e como um impulso, aproximou-se dele e olhou em seus olhos, e só ali, pode ver que ele era ela, que a única coisa que o fazia sorrir, era o mesmo que a fazia sorrir também, a música. Nas mãos do garoto havia letras e algumas cifras misturadas, e ao ver ela sorriu, sem dar nenhuma palavra, afinal, seria mesmo necessário palavras? Ela se convenceu que não.
No dia seguinte ela pôde notar que ele a observava, não gostava de atenção, mas a dele não parecia incomodar. Cada detalhe de cada um ia sendo notando a determinada medida que o tempo ia se esvairando, e a primeira palavra foi dita por ele, arriscando um simples “olá”, sendo retribuída espantosamente por ela.
Dia de visita, hoje sem saber por que razão, ela esperou por alguém, foi até uma pequena sala onde havia um piano e sentou-se ao lado do instrumento, esperou, esperou, mas mais uma vez ninguém veio, saiu decepcionada, não por ninguém ter vindo, mas por ela ter esperado alguém que não viria, ao passar pelo trajeto até o quarto, viu o garoto conversando com um rapaz, e notou mais uma vez a paz do sorriso em seus lábios, e neste mesmo instante, se viu sorrindo com um aperto no coração, e ao recomeçar o seu trajeto, notou alguém segurando a sua mão, ao virar-se, viu o seu “único professor” e a mão do garoto sobre a sua, espantou-se, e demorou a acreditar no que via, e como um instinto, abraçou fortemente o seu professor, mas abraçou como jamais havia abraçado alguém, como se entregasse todos os sentimentos bons, como se deixasse todas as suas angustias, medos e anseios para trás, e permaneceu assim por alguns minutos. O garoto ficou estático, não sabia o que estava ocorrendo, e então ela explicou que o conhecia da escola, e pra ela, ele era o único professor da mesma, e logo depois o professor pode dizer:
- Você sabia que eu a notava, e agora sabe o motivo. Este garoto é meu filho, e não há nada no mundo que eu ame mais, ele foi retirado de mim com três anos pela mãe, e a só dois anos atrás eu consegui encontrá-lo aqui, perdi toda a vida de um garoto que é tudo pra mim, e com isso, perdi a minha vida também, hoje ele completa 18 anos, e luto na justiça pela sua guarda para que eu possa retirá-lo daqui, tenho que vê-lo mensalmente, e não há nada que doa mais que ver aquilo que é a sua vida, distante de você, sem que você possa fazer nada para mudar isso. Em você eu via meu filho, e talvez por isso eu tenha passado noites pensando em onde você estaria, assim como passei noites pensando o mesmo dele. Você não aparecia mais nas aulas, seu jeito me fazia falta, fui atrás de você, perguntei aos seus pais, e eles não foram muito gentis comigo, e hoje, não há nada que me deixe mais feliz que ver meu filho, e você, juntos e tê-los comigo.
Ela não sabia o que dizer depois de ouvir aquilo, e sua única ação foi chorar.
O horário de visita acabara e eles precisavam voltar às angústias diárias, dessa vez estava sendo mais difícil, mas era necessário. Ao sair o professor a olhou e disse:
- De nada adianta preocupar-se com aquilo que não lhe é interessante, afinal, se isso ocorrer, será só um problema sem solução.
Ela achava que aquilo não cabia em nada, e passou dias pensando e a conclusão nenhuma chegou.
O garoto compartilhava suas músicas e pequenas cifras com ela, mas ela nunca conseguiu arrecadar coragem para tocar em seu violão mais uma vez. Tocar resgatava uma nostalgia que não lhe era aconchegante, e assim deixava a sua dor tomar conta do seu prazer.
Um ano se passou, e em um determinado dia de visita o seu professor trouxe a notícia mais feliz/triste que poderia se dar, ele conseguiu a guarda do garoto e o levaria dali consigo. Feliz seria ver a felicidade dos dois, pois eram seus sonhos realizados, e triste seria a sua única companhia, e razão de felicidade, estar indo embora. O professor não deixou de notar essa ambigüidade no rosto da garota, a abraçou chorando e sussurrou em seu ouvido:
- Eu tenho uma surpresa pra você, garotinha.
Ela simplesmente fechou os olhos, sorria e chorava ao mesmo tempo.
- Eu consegui a sua guarda também, e você irá conosco.
Nada poderia ser mais exagerado que a tamanha emoção sentida, e a família abraçava-se. Todos do local não conseguiam conter os sentimentos, e a garota saiu correndo para arrumar as suas coisas, ao voltar trazia apenas o violão e uma folha de papel, e disse:
- Não conseguia fazer aquilo que mais me dava prazer, o motivo por eu continuar seguindo, e deixava a dor superar o que ainda havia de bom em mim, mas agora tocarei, para que eu lembre disso aqui como forma de aprendizado, e grave este momento para que toda vez que tocar lembrar que podemos amar muitas pessoas e nem ao menos ser notada por elas, mas muitas vezes temos pessoas que nos amam e estão nos protegendo de todo o mal, e superando esse amor que não recebemos, e passamos a vida sem saber, por isso... De nada adianta preocupar-se com aquilo que não lhe é interessante, afinal se isso ocorrer, será só um problema sem solução.